Segundo documentos históricos do Arquivo Público do Paraná, a devassa geral resultou na denúncia de duas mulheres, mãe e filha. O levantamento foi realizado pela advogada Danielle Regina Wobeto de Araujo, professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e pesquisadora da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Ela analisou, para a tese inédita de doutorado (ainda não defendida), os processos contra feitiçaria em Curitiba entre 1763 e 1777.
“A cidade teve, nesse período, 560 processos, sendo 60 contra mulheres. Dois deles foram por feitiçaria, em pleno auge do Iluminismo. O crime era atribuição das justiças eclesiástica, a Igreja, e comum, a Câmara Municipal”, diz Danielle. Ela destaca que o escrivão da Casa, Antonio Francisco Guimarães, foi um dos quatro denunciantes das rés, acusando-as de terem feito feitiços e pacto com o diabo. A mãe, Francisca Rodrigues da Cunha, tinha cerca de 60 anos, enquanto a filha, Luiza Rodrigues da Cunha, declarou ter 23 anos.
Os registros apontam que as mulheres eram indígenas, da “nação carijó”, e estavam descalças no dia do julgamento. O marido e pai das acusadas de feitiçaria, de acordo com o processo, era “escravo do hospício”. “Outra denunciante, Romana Álvares Teixeira, falou que elas tinham matado seu marido com um feitiço e seduzido juízes para escapar do processo. Também teriam sacrificado bichos e aleijado uma pessoa”, relata Danielle.
“Uma curiosidade do processo é que foi chamado um feiticeiro do povoado de Ponta Grossa, que confirmou que o homem realmente morreu vítima de feitiço. No entanto, ele fugiu antes de se pronunciar no julgamento”, conta a pesquisadora. Já a defesa argumentou que a testemunha queria se casar com Luiza, que o rejeitou. Ele então teria feito a acusação para se vingar. Outra justificativa apresentada para pedir a absolvição foi que as rés haviam recebido educação católica. Presas desde 6 de fevereiro de 1775, mãe e filha foram absolvidas pelo ouvidor Coutinho no dia 22 do mesmo mês, por falta de provas.
Exorcismo
O outro processo da Câmara Municipal de Curitiba contra feitiçaria, no período pesquisado, foi instaurado no dia 7 de março de 1763. A “negra forra” Sipriana Rodrigues Seixas, casada e grávida, na faixa dos 40 anos, foi acusada por Manuel da Cunha de provocar doenças em sua esposa, quatro filhas e uma irmã. “O denunciante afirmou que ela ‘tinha um cartório’ com mulheres de nome ‘Fuã’ (não é possível identificar quantas eram). Ou seja, que elas estavam organizadas”, relata Danielle.
“Ele disse que, devido aos feitiços de Sipriana e das Fuãs, suas familiares vomitavam baratas vivas, pedaços de ossos, cabelo e pernas de sapo, entre outras coisas”, completa. O processo menciona que foi chamado o reverendo vigário, e que apenas com exorcismos as supostas vítimas melhoravam. Outra acusação é que as mulheres faziam bolos envenenados, com os quais mataram algumas pessoas.
Segundo a pesquisadora, uma das testemunhas afirmou que a reigão da Vila de São José dos Pinhais tinha muitas feiticeiras, subentendendo-se que as rés moravam na região. “O interessante é que a Romana, que 12 anos depois acusaria Francisca e Luiza, foi uma das pessoas que defendeu Sipriana, alegando sua inocência”, afirma.
A sentença saiu no dia 14 de junho de 1763, pelas mãos do juiz ordinário de Curitiba Manoel Gonçalves de Sam Payo. Elas foram condenadas à prisão pela prática de feitiçaria, sem um tempo estipulado. Sipriana, então, fez uma apelação à Ouvidoria de Paranaguá (Curitiba só se tornou sede da Comarca em 1812), mas não há informações sobre a continuidade do processo.
Há uma possível referência ao caso no “termo de vereanssa” da sessão de 10 de setembro de 1763. O juiz ordinário Sam Payo discorreu sobre mulheres que estavam presas na cadeia da vila “por crime que lhe arguirão partes que dellas denunciarão” e deveriam ser enviadas a Paranaguá, sede da Comarca.
Ele pediu dinheiro ao Conselho para a remessa das detentas, mas o tesoureiro da Câmara Municipal de Curitiba argumentou que não seria possível, devido às “muitas despezas que se havião feito”. Não foi localizada, nas demais atas do ano e nas de 1764, outra menção às mulheres presas que deveriam ser enviadas a Paranaguá.
Outra pesquisadora, Liliam Ferraresi Brighente, já havia realizado um levantamento no Arquivo Público do Paraná sobre processos contra a feitiçaria entre 1700 e 1750. Ela identificou um caso de 1735, em Paranaguá. Denunciada por Manoel Gonçalvez Carreir, a índia Maria do Gentio da Terra foi considerada culpada e “degredada” (expulsa) da vila.
Análise
“São processos típicos da época, sem lógica cartesiana e materialmente desgastados pelo tempo”, analisa Danielle. “Eles indicam a imposição da Igreja Católica por meio do direito e que a sociedade ainda tinha uma visão mágica do mundo. Apontam que as autoridades da Câmara Municipal preocupavam-se em manter a religiosidade”.
O zelo pela religiosidade é corroborado por diversos documentos da época. Primeira correição da Vila de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais e base para posturas dos futuros ouvidores e da Câmara Municipal, os provimentos do ouvidor Raphael Pires Pardinho, de 1721, não trataram apenas de questões para aorganização da cidade.
Dividido em 129 “artigos”, o documento trata, por exemplo, do pagamento do dízimo e da obrigação de todos assistirem e prepararem suas casas para as procissões de Corpus Christi e de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais, dentre outras, sob a pena de multa de uma “pataca”.
Já os provimentos de 1800, do ouvidor-geral e corregedor João Baptista dos Guimarães Peixoto, afirmam que os juízes ordinários deveriam prezar pela conservação da decência e respeito. Caberia a esses oficiais da Câmara Municipal “dar parte” ao corregedor de “pessoas que mostrarem publicamente pouca religião e que forem escandalosas”.
“O Brasil não reproduziu a caça às bruxas vista na Europa. A Inquisição, de uma maneira geral, esteve mais preocupada em investigar novos cristãos (judeus convertidos) e sodomitas (homossexuais)”, complementa Danielle. “O perfil dos acusados de feitiçaria, tanto pela Igreja quanto pela justiça comum, era de mulheres pobres. Negras, pardas ou índias”.
De acordo com o “Dicionário do Brasil Colonial”, o país teve, entre os séculos 16 e 18, 200 acusações de fetiçaria. “Poucos foram os processos completos do Santo Ofício português nessa matéria. (…) Menos preocupada com a feitiçaria que com o Judaísmo, a Inquisição portuguesa perseguiu pouco a feitiçaria, rastreando mais o shabat judaico que o sabá diabólico”, explica a obra.
Matérias nos jornais
No final do século 19 e início do século 20, quando já circulavam jornais em Curitiba, há diversos registros na imprensa sobre supostos casos de feitiçaria. O Diário da Tarde, por exemplo, possuía a seção “Vitrina do Diabo”, com viés sensacionalista. Uma das personagens das notícias é Anna Formiga. Segundo pesquisa publicada em 1991, do historiador Johni Langer, ela residia na rua Doutor Pedrosa, em trecho hoje denominado Benjamin Lins, e “era famosa por suas supostas ligações com o demônio”.
O Diário da Tarde publicou, no dia 8 de maio de 1889, uma nota intitulada “Feiticeira – Artes de Satanaz”. “Anna Formiga é o nome da mulher que diz ter relações com Satanaz, cuja vontade domina. É moradora à Rua Dr. Pedroza. Em noite passada, teve uma questão com um cabo do 13º regimento de cavallaria e jurou vingar-se”, dizia. A publicação afirmou que ela então lançou um feitiço contra o homem, cuja esposa adoeceu. “A polícia tomou conhecimento do facto”.
Dois dias depois, o Diário da Tarde veiculou a nota “O caso da feiticeira – Novas notícias”. O jornal denunciava “novas bruxarias”, sem vinculá-las a Anna Formiga: “Não seria máu que a polícia diligenciasse na descoberta dessas bruxas, feiticeiras ou encantadas, como quer que se lhes chame”.
Autora do livro “Lendas Curitibanas”, a escritora Luciana do Rocio Mallon publicou uma história na internet sobre Anna Formiga, apelidada de “bruxa de Curitiba”. O texto afirma que ela se chamava Ane O’Neil e fugiu da Escócia para escapar da acusação de matar crianças em “rituais macabros”. Em Curitiba, oferecia serviços de curandeira e lia a sorte das pessoas.
“Como a mulher tinha o traseiro avantajado, igual o de uma tanajura, e comia muitos doces, recebeu o apelido. Esta feiticeira tinha hipoglicemia e toda vez que sua taxa de glicose baixava, passava mal. Por isso, muitas vezes aceitava doces como forma de pagamento pelos seus serviços”, relata. A lenda urbana justifica que o cabo a prendeu por furtar guloseimas de uma confeitaria, e então Anna lançou-lhe o feitiço, responsável por matar sua esposa. Já a fiança teria sido paga pelos clientes da “bruxa”.
Mas nem só das histórias da Anna Formiga vivia o Diário da Tarde. No dia 25 de setembro de 1901, por exemplo, o jornal trouxe a nota “Cartomantes e desordeiros”. “Alguns moradores da rua S. José, nas proximidades da rua Silva Jardim, queixão se contra a permanência n’aquelle ponto de uma família de cartomantes, que reunindo a noute em sua casa uma porção de desordeiros passam-n’a toda em um sabbat infernal, cantando obscenamente e fazendo enorme barulho com grande escandalo da visinhança”, dizia.
Nesta época, porém, a Câmara de Curitiba não respondia mais pelo Poder Judiciário. “Com a Independência do Brasil, as funções institucionais das Câmaras sofreriam algumas alterações. A mais digna de nota foi a perda de atribuições judiciárias”, destaca o “Livro dos 300 Anos da Câmara Municipal de Curitiba”.
Tais histórias, então, passaram a fazer parte do imaginário popular. “A Anna Formiga realmente existiu, mas não há provas dos rituais atribuídos a ela. As lendas urbanas são exatamente isto: causos que o povo conta, sem comprovação científica”, conclui Luciana.
A sociedade curitibana no final do século 19, época em que Anna Formiga era noticiada pelos jornais como feiticeira. A foto é da rua João Gualberto, em 1880
Câmara de Curitiba instaurou vários processos contra feitiçaria no século 18 -Foto: acervo Casa da Memória.