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Babel

 

Leia a história “babel”, de Adriana Griner, vencedora do
Prêmio Paraná de Literatura na categoria Contos com o livro: No Início.

Babel acabara de ver a torre ruir. Não tinha sido como um terremoto que de um zás come a terra, as tendas, as casas, as gentes. Ou um raio que destrói uma árvore, em que a luz traz em si o seu oposto.

 

Tinha sido quase como um ato de amor, o nível mais alto caindo devagarzinho, esfarelando-se como um bolo mal ligado, e levando consigo mais uma pedra, e outra, e outra, até sobrar apenas poeira para todos os lados. Alguém poderia dizer que a torre chegava aos céus, pois lá estava ela envolta em nuvens de pó que não se distinguiam das pesadas nuvens de chuva que vinham logo acima. Pelo chão, à volta da torre, pedras em cacos pareciam construir caminhos para o topo encoberto da torre, e de longe parecia uma imensa montanha escarpada.

 

Não tardou muito e a chuva começou a cair. Uma chuva forte que durou dias e limpou o horizonte. E as pessoas puderam por fim ver babel destruída. Nem toda a torre jazia por terra. Uma parte dela ainda se encontrava ali, apontando o céu, mas apenas os dois primeiros níveis tinham sobrevivido parcialmente.

 

Mas tudo se deu antes de se poder ver em que a torre tinha se transformado. Babel olhara pela janela e vira a torre se desfazendo. E por um instante esquecera da vida e ficara a mirar o pó e a destruição, e a não entender o mundo diante de si. Mas a voz que veio do quarto a trouxe de volta, e ela correu a colocar mais lenha no fogo, e a esquentar a água, e a acudir seu filho e perguntar: “Quer leite? Pão?”, e seu filho só a olhou com olhos transparentes e lhe respondeu: “Na? Taledachkvach, ama!”, e ela achou graça de seu filho a inventar uma língua, e dos sons guturais e raspados que ele fazia, e foi a trazer um chá e um pão para ele, que ele devia estar a brincar e a dizer do jeito que só crianças podem inventar que o leite não lhe satisfaria hoje... e correu a contar a graça de seu filho a seu homem, que ainda  dormitava, mesmo com todo o barulho que a torre fizera, mesmo com tudo, e pensou que devia mesmo de acordá-lo, a torre caíra, a torre se esfarelara, sim, tinha de acordá-lo e contar, e mexeu e remexeu, e tentou levantá-lo e tudo que ele disse foi “Denshaideshnain” e ela ainda sorriu e achou graça também, então seus homens estavam tirando o dia para se rir dela, então o sacudiu ainda mais e falou “A torre, a torre se caiu, você tem de acordar e vê-la!”, mas seu homem acordou e só a olhou com olhos espantados e pareceu tentar falar algo com ela, mas tudo que ouviu foi “Otshaanaseshanain” e ela se riu e achou ainda mais graça. Eles deviam de ter combinado na véspera a brincadeira, era bem deles inventar um jeito assim de se rir dela, inventar uma língua que ela não entendesse e não percebesse, iam todos rir muito depois, e ela se foi a cuidar do chá de seu homem e ver se seu menino já comera e já estava pronto para acompanhar o pai na lida.


Mas não era uma brincadeira. Quando os dois por fim se sentaram para comer, o chiado do vento nas tamareiras não entendia o som rascante do rio cortando a pedra, e eles eram surdos um para o outro, e o menino se pôs a chorar, e o pai puxou do menino para si, inentendendo o que se passava, mas certo que algo se passava. E sem palavras, os três se foram para a rua, falando para os ventos, e ouvindo vozes cortantes, sibilantes, guturais, chiadas, até encontrarem alguém que falasse a mesma língua de um deles, e descobrir que era o que se passava em cada casa, em cada rua, em cada tenda, em cada jardim.

 

E com os dias se passando, começaram a ver que as pessoas iam se juntando, as que falavam a língua chiada acabavam por encontrar outra que falava sua língua, e iam e se juntavam na mesma casa, e os que encontravam os sons que puxavam da garganta encontravam outros que também forçavam suas gargantas, e foram se fazendo grupos e os grupos foram se acomodando nas mesmas casas, e alguns resolviam que iriam embora assim mesmo, que melhor era encontrar um lugar em que todos se entendessem, e não fossem ao mercado e pedissem farinha e recebessem uma galinha, ou quisessem comprar uma manta e saíssem com um tapete. E os bandos foram se fazendo, e pais abandonavam filhos, e netos abandonavam avós, e muitos se iam, e a cidade foi ficando abandonada, só fiando famílias como a sua, famílias que se recusavam a se separar e a se deixar, que a língua não iria desfazer do amor que os juntava, as línguas, na verdade, que  cada um tinha a sua, cada um falava de um jeito até que por fim quase abandonaram as palavras na casa, e se falavam por gestos, assovios e risos, e por vezes lágrimas também, mas não seria a língua que os deixaria longe um do outro.

 

E pela cidade era possível sempre encontrar pessoas que ainda falassem a sua língua, que não se perdesse de todo, e foi assim que ela encontrou o mendigo que morava na sombra do velho templo, e a quem ela sempre apenas deixava a sobra da janta do dia anterior, mas que agora se tornara o seu único amigo, e ele contava da vida grandiosa que tivera, e de como sua mulher o abandonara e fora embora com um viajante, e como levara seus filhos e ele não tivera mais gosto para a vida, e como a vida era esperar a esmola deixada e olhar as gentes que passavam. E ela escutava, a delícia de entender a mesma história contada dia após dia, o sorver das palavras conhecidas, ela já quase decorando que palavra viria depois, e voltar para casa plena de troca e felicidade, ela que tinha alguém na cidade fantasma, ela que podia falar e ouvir por fim.

 

Ela ainda pensou talvez em sair a procurar pessoas com quem falar, ela que ficara com sua língua, ela que se saísse da cidade com certeza encontraria outras pessoas de sua língua, mais facilmente que qualquer um, mas não se era babel à toa, com certeza devia de ter uma razão para ter ela esse nome, ela e a cidade unidas desde sempre. E não lhe parecia certo abandonar a pequena horta nos fundos da casa, as videiras que cresciam pelas varandas e muros, o campo a se prolongar por trás da casa até o horizonte e as cabras a pastar e os cachorros a correr e a latir. Eles que pareciam agora se entender melhor do que os homens, quem sabe a língua deles não tinha sido misturada, e então ela danava a pensar o que tinha sido aquilo, quem tinha feito a mágica, quem tinha sido o deus que perdera seu tempo a misturar as línguas, e ele devia de ter perdido muito tempo, sim, inventar tantas línguas devia de tomar muito tempo, muito esforço, e para que tanta lida para fazer as pessoas se desentenderem, para que tanto trabalho para ver pai e filho não perceberem o que o outro falava, avó e neto não saberem o que o outro queria, e as gentes a se desconhecerem e a não poder trocar e trabalhar e festar. Havia de ser um deus muito mau ou perdido, para gastar seu vigor numa empreitada assim desarrazoada, e foi só quando o seu amigo, o mendigo do templo, veio lhe dizer que tinha sido o deus do templo, que tivera raiva dos homens querendo chegar no céu, que não queria homens chegando no lugar dele, que ela atinou ainda mais na falta de sentido, e perguntou para o mendigo se ele imaginava a razão naquilo tudo, e o mendigo falou que com certeza era um castigo para os homens, porque o céu não era lugar aonde se pudesse chegar, e então a misturada de línguas era um castigo divino, e ela ainda perguntou para ele: “Mas que castigo é esse que ninguém sabe que é um castigo? Que ninguém sabe que tem um deus e que esse deus está castigando? Que ninguém pode nem saber desse castigo porque cada um fala uma outra língua, e está mais é preocupado com retomar a vida, e cultivar sua terra, e cuidar de seu filho, ou do filho de outro que fala sua língua, e da mulher de outro que também fala sua língua, e em plantar e trocar e comer e viver?”. E o mendigo seu amigo também não tinha respostas, ele também só tendo a ela para falar, e ela lhe perguntou por que não ia procurar outras pessoas que falassem sua língua, já que ele não tinha um homem e um filho que nem ela, e ele lhe disse que a vida não mudara para ele, antes ele estava ali diante do templo e ninguém falava com ele, ela lhe trazia o de comer, mas não conversava com ele, e ninguém mais também falava com ele, agora ele tinha uma amiga e com quem falar, aquela praga de deus tinha mais é deixado sua vida igual, mas um pouco melhor, não? E ela não teve como não concordar, a vida não era tão diferente assim para ele, e ela também pensou que para ela também não, porque aos poucos eles iam construindo uma língua nova na casa deles, e quando o filho falava “mata” e apontava a uva, eles guardavam a palavra e a iam usando, e quando ela trazia o chá e oferecia “Chá?”, também eles guardavam a palavra, e pouco a pouco uma língua feita de remendos foi se fazendo na sua casa, e eles se entendiam pelas palavras já comuns ou as inventadas, pelos gestos e pelas novas palavras que a cada dia um deles ia incorporando.

 

E isso foi acontecendo também com as pessoas da cidade. As pessoas iam seguindo suas vidas, era preciso semear o trigo e a cevada, era preciso colher a uva e as tâmaras, era preciso fazer o pão e preparar o vinho. As pessoas iam seguindo em suas tarefas diárias, e por vezes era preciso trocar algo que sobrara da colheita, e as pessoas levavam seus produtos ao mercado e tentavam se entender de alguma forma, balbuciavam sons que não eram compreendidos, e ainda assim conseguiam trocar sua cesta por um saco de vinho, trocar a roupa cerzida com carinho por um naco de carne, e então riam-se da forma do outro chamar o pão e os fios, e alguns iam repetindo as palavras engraçadas do outro, e vez por outra uma palavra aparecia da junção das palavras, ou alguém adotava a palavra do outro, ou ainda inventavam outra palavra a designar algo velho. Ou novo. Ou igual.

 


II

 

Poucas pessoas se dignavam a ir até a torre. Que já não era bem uma torre, era mais uma base espalhada pelo chão, mas ainda restara dois níveis na torre, e o buraco que se fizera fazia lembrar um vulcão. As crianças foram as primeiras a se aventurar a subir na torre, e brincar no grande buraco a se esconder entre os entulhos e a voltar e tentar contar aos pais o que haviam visto. Os pais sacudiam a cabeça, por demais ocupados em refazer suas vidas, e pouco entendendo o que cada filho falava, mas aos poucos a curiosidade os fez também subir pelos lados da torre e chegar ao baixo topo e olhar à volta e ver os destroços. Alguns ainda tentavam explicar uns aos outros o que viam e sentiam, mas a língua comum ainda era pouca para conseguirem se entender. Voltavam aos afazeres diários e seguiam a vida de plantar, colher, cozinhar, beber, comer.

 

Alguns ainda faziam suas abluções e rezavam ao seu deus. Mas mesmo deus perdia importância naquele mundo de tantas línguas, e era um ato solitário que muitos iam largando, mais preocupados com a sobrevivência diária. Também havia aqueles que desconfiavam que deus era responsável pela destruição da torre e pelo confundir das línguas, e perdiam a paciência com aquele deus pequenininho que devia de ter destruído a torre por pura inveja. Mas esses eram poucos. A maior parte simplesmente ignorava deus e a torre e o tumulto de línguas que se seguira à destruição.

 

E a vida foi seguindo. As pessoas conviviam mais, e uma nova língua se foi fazendo ali, uma língua comum a todos que ficaram. As pessoas viram o fogo e a chuva, e o trovão e o campo dourado, e passaram a adorar o deus do fogo e da chuva, o deus do campo e da casa, e novos rituais foram se construindo, e novos templos foram erigidos. Apareceram pela cidade outros povos que ora saqueavam, ora vinham comprar, ora apenas bebiam da água e do vinho, comiam do pão e do queijo. Era preciso defender a cidade, e alguns começaram a construir novos muros e se prontificaram a proteger a cidade.

 

Alguns estrangeiros ainda perguntavam o que era aquela construção abandonada. Os que lembravam contavam da torre, os que não se lembravam inventavam novas histórias. Nem os estrangeiros entendiam o que eles falavam, nem eles se preocupavam muito com isso. As novas histórias sobre a torre se tornavam lendas, e nascidas novas gerações já ninguém lembrava quem tinha construído a torre, quem tinha morrido em sua destruição, nem como nem por que a torre tinha se desfeito. As crianças continuavam a brincar na torre, as pessoas se entendiam em sua nova língua, e os pais ensinavam aos filhos como fazer o vinho, e tosquiar as ovelhas, e costurar a roupa. Mas já não falavam da torre e assim sua história morreu.

 

As pessoas vinham a babel e gostavam da gente de lá, e outros povos iam se incorporando à cidade e a chamavam por outros nomes, até o nome babel ser esquecido. E a torre já era chamada de velho ginásio, e lá as crianças brincavam e corriam e perdiam-se e riam-se.

 


III

Babel estava velha. Seu homem já tinha morrido de há muito, seu filho em uma tempestade não voltara com as trocas pela colheita que levara a negociar. Ela vivia com seus netos e bisnetos e tataranetos, a casa grande cheia de crianças a correr e a comer e a balbuciar. Ela se ria dos balbucios dos pequenos, as tentativas que lhe lembravam os começos da língua comum, quando os sons raspantes de seu filho lhe pareciam riscos no ar, quando os chiados de seu homem lhe pareciam as folhas de outono, e seu amigo era o único a não balbuciar, o único a falar coisa com coisa, a fazer sentido em seus ouvidos e a lembrar que as línguas tinham sido um castigo, tinham sido a raiva de um deus invejoso, invejoso dos homens a subir aos céus, invejoso dos homens que trabalhavam juntos e se riam e bebiam e comiam e festavam e se amavam. Sim, devia de ser um deus muito só, desses que não sabem que são sós, que vivem sozinhos por tantos anos que já se esqueceram que não precisa ser assim, que acham que apenas sozinhos podem continuar a viver e a criar e a existir. Desses que não sabem que estar só é a pior maldição, e acabam se comprazendo na solidão como quem festeja, como quem acha que o outro impede o outro fecha os caminhos... quando é exatamente o oposto.

 

Ah, e que saudade de seu amigo. Ela se acostumara com a língua comum, a língua que trazia de tudo um pouco, o chiado, o rascante, o quebrado, as diferentes ordens, as palavras se encavalando, as palavras soltas e as palavras fechadas. Mas faltava-lhe poder falar do sol que se punha a cada dia, das gentes, das cores, ela a cada dia que passava se via faltando a palavra exata, aquela que diria exatamente da lua que nascia redonda na montanha, ou da dor profunda que só ela sabia, porque só a sua palavra perdida a podia dizer, ou montar a frase como um rio escorrendo pelas pedras, e não quebrado, e não pulado, e não claro, e não elegante, não, o rio nas suas palavras, e que era o rio como devia de ser,  o rio que corria diante de seus olhos levando as tristezas e as mágoas e as saudades tão grandes.

 

Fazia-lhe falta conversar com seu amigo, o mendigo da porta do templo, e que sabia por que tudo ocorrera, e pensar que ninguém senão eles sabiam que deus tinha feito aquilo, o deus que se julgava único, o deus que se achava só. E que era só. Porque só um deus que é só podia fazer aquilo. Só, sozinho.

 

E agora ela subia a torre. Ela, que nunca mais pusera os pés na torre. Ela, que só olhara de sua janela a torre ruir, ela que era babel não só no nome, ela que sabia que aquela torre não queria chegar a deus algum, aquela torre era apenas as gentes juntas e misturadas e tantas e fortes colocando pedra sobre pedra sobre pedra, elas que eram o construir, o estar próximas, o estar unidas pelo fazer, pelo colocar mais uma e mais uma e mais uma. Ela subia ao que restava da torre, com cuidado, como quem sabe que cada pedra em que pisa é uma armadilha, ela que estava tão velha que nem mais contavam os anos, mas suas pernas ainda eram fortes e ainda andavam. Sim, havia coisas que não funcionavam nela, mas não suas pernas. E não sua cabeça. Ela ainda pensava, e quando pensava era na antiga língua de babel, ela que mantivera a língua, ela que em sonhos conversava com seu amigo para não perder a língua. Ela que se soubesse os mistérios da escrita teria escrito esta história. Mas ela não sabia, e então era em sua memória que se guardava a torre e a queda e o mais. Babel.

 

E ela subia, e era com esforço mas certeza, e mais um degrau, e mais uma pedra, e mais. E já o céu se descortinava inteiro, apenas mais uns degraus, e por dentro do segundo nível ela viu a pequena torre. E por lá ela subiu e lá estava ele, sentado em uma pequena mureta que se mantinha no alto. Olhando. E se lamentando.

 

“Eles me esqueceram, eles se esqueceram da torre, eles têm uma nova língua comum. Eles vivem outra vida, eles de nada se lembram. Eles plantam e colhem e trocam. Eles casam, e têm seus filhos e seus filhos têm filhos e netos e bisnetos. Ninguém se lembra de babel, ninguém se lembra da torre, ninguém se lembra de mim, ninguém se lembra do que fiz ninguém se lembra por que fiz... ninguém.”

 

E babel concordou: “E não há mais torres para destruir. E ninguém mais querendo chegar aos céus”.

 

Adriana Griner nasceu em 1962, no rio de Janeiro (rJ), onde mora atualmente — depois de temporadas em Brasília (Df), Campinas (SP) e israel. formada em letras pela Universidade estadual de Campinas (Unicamp), já foi bancária e hoje atua como professora do instituto Tecnológico ORT, escola sem fins lucrativos de origem judaica. no início marca sua estreia na literatura.

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